29 agosto, 2006

UM CONTO NUMA MANHÃ DE PRIMAVERA

Ainda tenho por cá o meu filho. Também confesso que me dou mal com o calor, este calor que me impede de pensar, de escrever e de sentir o aroma das coisas e o vibrar da natureza em amor e alegria, como na Primavera. Gosto ainda da louca mas genuína violência dos elementos no Inverno, o grito de revolta das tempestades, os lamentos do vento pelos pinhais. Tempestades de Inverno, irmãs da minha loucura, ou manhãs de primavera cuja fresca harmonia da natureza são um bálsamo, um calmante para a minha demência. Então sim, escrevo com o mais puro e profundo sentimento do meu coração.

Por tudo isto e para não prolongar mais a minha ausência, da qual obviamente, vocês nem deram conta, vou deixar aqui este escrito que muitos já conhecem, mas para satisfazer o insistente pedido de uma amiga.

Beijitos para elas, abraços para eles.
Besnico

Sei bem que há muita pobreza encoberta, envergonhada e que este conto se pode encaixar em qualquer um. Todavia advirto que qualquer coincidência de nomes ou situações semelhantes, são mera coincidência. O autor não procurou visar ninguém em especial é tudo fruto da imaginação delirante e demente, do Besnico.

* * *

Há dias enquanto terminava o meu café, sentado numa frondosa esplanada, ali para os lados da Lapa, observei duas mulheres idosas, que, aparentemente sem destino hesitavam entre atravessar a rua ou continuar, seguindo pelo passeio.
Para um observador menos atento não seriam mais do que duas mendigas andrajosas, transportando dois velhos e enormes sacos de viagem. Porém, reconheci nelas traços de um passado e a minha imaginação levou-me a recordar cenas da minha infância e de conjectura em conjectura, nasceu esta história que não sendo verdadeira não deve andar muito longe da realidade.
As duas mendigas à medida que as fui observando e escutando iam cada vez mais revelando as suas identidades. Seguindo-as discretamente, fui tentando reconstituir o seu passado.
Como eu as conhecia bem. Como eu vivi perto delas a minha infância e parte da juventude.
Mesmo com os cabelos mal tratados e os rostos vincados pelo tempo e pelo sofrimento, reconheci numa delas a serenidade e a dedicação da velha criada, na outra, o encanto e a postura de uma verdadeira senhora.
Pelas vestes, igualmente fora de moda e já gastas, reconheci o tecido e o corte inconfundível dos bons costureiros dos anos cinquenta. Para confirmar, bastou-me verificar com o olhar aqueles sacos de viagem em tecido e pele genuína e lá estavam, descolorados, quase ilegíveis, rótulos dos melhores hotéis da Europa, onde ainda li, Biarritz, Cúria, Pedras Salgadas, Nice...
Turvou-se-me a vista, já conhecia a história.
Mariana, morena, olhos verdes, pequena, elegante, em toda a graciosidade dos seus vinte e poucos anos. Parece que a estou a ver numa manhã de Primavera, com o seu vestido branco de saia de roda plissada, descendo o Chiado no alto dos seus sapatos de salto em cunha de cortiça, muito ao jeito daquela época, fazendo girar a cabeça dos galantes frequentadores da pastelaria Benard, para de seguida entrar como um furacão na casa de modas Paris em Lisboa, ou no Último Figurino, na rua do Mundo, onde fazia revolver prateleiras de tecidos ou desmanchar expositores, para no final sob o olhar atónito do gerente, acabar por adquirir um elegante e caríssimo vestido de noite que estava na montra e supostamente com dono.
Foi assim, numa dessas manhãs que um banqueiro quarentão e riquíssimo a viu e tanta graça lhe achou que se ligaram num profundo amor, que só Deus veio separar.
Maria José, mulher alta, forte, de uma beleza rústica, nascida numa terra ali para os lados de Leiria e que um casamento infeliz obrigou a procurar refúgio em Lisboa.
Foi na cidade que se conheceram. Mariana recolheu-a em sua casa, onde a troco de pequenos serviços, recebia salário, cama e mesa.
Desde muito cedo que Maria José passou a fazer parte da família, numa amizade e dedicação recíproca, cimentada pelo tempo, por pequenas confidências, uma certa cumplicidade e favores mútuos.
Vieram os tempos difíceis, depois da morte do senhor, hoje esbatendo-se no tempo a relação criada-senhora, já talvez não saibam se não serão duas irmãs.
Foi hoje, aqui, que eu as reencontrei. Nesta linda manhã de Primavera em que por algum capricho de Deus o céu está límpido e azul como nos anos cinquenta e o aroma das flores se espalha incrivelmente pela cidade como há quarenta anos. Nas Avenidas Novas, na Lapa, por toda a cidade, em bandos, as andorinhas esvoaçam e constroem os ninhos nos beirais dos telhados. Hoje, aqui, em 1991 deu-se um milagre; Mariana acordou radiante, sem reumático, Maria José habituada aos caprichos da sua senhora já lhe havia adivinhado o pensamento:
- Maria José! Prepara as minhas malas, vamos partir para a Cúria.
- Sim minha senhora, já as tirei para baixo.
Aos poucos nos sacos de viagem foram-se amontoado os andrajosos trapos. Que nada faltasse à sua senhora.
Com lágrimas nos olhos Maria José ia fazendo as malas. Também ela estava ansiosa por partir. Não sabia bem para onde, mas ia com a sua senhora, fosse lá para onde fosse; e logo hoje que se lembrava tão bem daquela manhã em que partiram para o Buçaco.
Na rua, do outro lado, à sua espera estava o Buick vermelho, Maria José corou; de pé, gordinho e rosado, a abrir a porta estava Edmundo, o motorista, a seu lado sorridente, elegantíssimo na sua camisa de seda natural com monograma bordado, sapato preto e branco e chapéu de palha, estava o senhor. Ninguém mais os via, só elas, mas... estava tão difícil atravessar a rua?!...
Não era costume, não havia tantos carros em Lisboa!
- D.ª Mariana não atravesse ai. Cuidado! Venha por aqui.
- Maria José de onde vieram todos estes automóveis?!
* * *
Dedico este conto a todas as Marianas e Marias José, na esperança de que pela mão de Deus consigam atravessar a rua, na certeza, de que sem dúvida, do outro lado, sorridente, alguém as espera na ânsia da partida.
Besnico di Roma - 1991

9 Comments:

At 29 agosto, 2006, Blogger Maria P. said...

Este homem é um romântico!!

Beijinhos, meu Besnico.

 
At 29 agosto, 2006, Blogger APC said...

Embargaram-se-me as palavras.
Ficaram presas nos meus olhos...

 
At 29 agosto, 2006, Anonymous Anónimo said...

Ó Besnico você até parece que me conhece? Já lhe disse que sou filho de mãe solteira, pois, a minha mãe foi empregada de servir toda a vida, eu claro está, fui criado em casa dos senhores onde me fiz rapazinho com 12 anos, aproveito para lhe dizer que a mansão ainda está de pé, sempre que por ali passo lembro-me da minha criação na dita, e que só conheci a marquise a cozinha e o sótão, nunca entrei pela porta da frente, o meu acesso era pelo quintal, mas escrevo isto para lhe dizer que hoje a patroa da minha mãe, está viúva, e as duas encontram-se aqui por Pombal, tomam uns cafés, a senhora perdeu todo o património e por isso vive numa casa da Câmara, mas, é ver como resmungam as duas, a minha mãe: eu já disse á senhora... a patroa: ó rapariga não sejas teimosa... as duas que já ultrapassaram os 70 anos deixam-me com uma saudade de ouvir: ó rapariga o Toninho já lanchou? - não minha senhora agora não tenho tempo! - anda cá filho que a tua mãe.... sabe Besnico, ela, a senhora preparava-me na cozinha uma malga de café com um quarto de pão bem untado de manteiga, daquela que os senhores traziam do Algarve, ainda hoje gosto e de vez enquanto repito a dose, a manteiga, essa é que não vem lá dos Algarves.

Deixo-lhe o meu abraço...

 
At 30 agosto, 2006, Anonymous Anónimo said...

Deixe-se de mimos connosco! Se bem que este conto foi um lindo mimo. Curta o seu filho, que nós leitores, lhe desculpamos tudo!

No meu primeiro ano e meio em Lisboa fiquei hospedada na casa de uma Senhora, que tinha uma empregada. A empregada fora lá para casa aos 15 anos, tinha a senhora 20. Depois a empregada casou, e a senhora não gostou nada, porque achava que ele não prestava para a sua empregada. Eram as duas tão engraçadas! Sempre a brigar, a fazerem-me queixas uma da outra, mas adoravam-se.
E eu no meio daquilo tudo era a menina...

 
At 30 agosto, 2006, Blogger Maria P. said...

Besnico!!Besnico!!!! Cuidado com os feitiços da Carmencita!!!!

 
At 31 agosto, 2006, Anonymous Anónimo said...

Ainda tenho os olhos toldados...
Hoje estou muito sentimental...
Recordações!!!

 
At 31 agosto, 2006, Blogger Maria P. said...

Ui! Ai! UI ui!
Ele acabou de me linkar!!!!ai aiai...

 
At 02 setembro, 2006, Blogger Poesia Portuguesa said...

Que posso dizer depois de ler este texto?
Que todo ele é Poesia...

Um abraço comovido ;)

 
At 14 setembro, 2006, Blogger Nina Owls said...

adorei o texto...vim aqui parar link a link mas ainda bem. Sr Besnico, estou a ler um livro de Vasco Graça Moura que saiu na visão, de contos inéditos que fala precisamente da diferença entre classes na época de abril de 75 , retrato esse pela boca de duas mulheres. O seu retrato está de uma forma bem mais resumida, é certo mas também (que Vasco Graça Moura não me oiça) mais romantico...adicionei o site. Buenas noches

 

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